A porta abriu-se e a Grã-duquesa entrou com um sorriso radiante de boas-vindas e a sua mão branca estendida. “”Estou tão contente por ver que tive tempo para vê-la hoje, senhora Dorr!”, disse ela, numa voz de rara doçura.
“Vossa Alteza fala inglês?” exclamei eu, surpresa, e ela respondeu, apontando para uma cadeira confortável. “Porque não? A minha mãe era inglesa.”
Tinha-me esquecido por um momento que a Grã-duquesa e a sua irmã mais nova, a antiga Imperatriz da Rússia, eram filhas da Princesa Alice de Inglaterra e netas da Rainha Vitória. A Rússia também parecia ter-se esquecido disso e só se lembrava que o pai destas mulheres era o Grão-duque de Hesse e do Reno. A Grã-duquesa acrescentou enquanto nos sentávamos que quando era criança falava sempre inglês com a sua mãe e alemão apenas com o seu pai. “Fico feliz com a oportunidade de falar inglês, já que sendo completamente russa, como sou, e especialmente se formos uma russa ortodoxa, uma pessoa ouve muito pouco além de russo e francês.” Depois disse, com outro sorriso radiante: “Diga-me o que acha do meu convento.”
Disse-lhe que me sentia como se tivesse voltado atrás no tempo para o resplandecente e romântico século XIII.
“Era exactamente isso que eu queria para o meu convento!” Respondeu ela. “Queria que fosse um daqueles lugares ocupados e úteis dos tempos medievais. Os conventos assim eram magnificamente eficientes na idade média e acho que eles nunca deviam ter desaparecido. A Rússia precisa deles, de certeza, do tipo de convento que se coloque entre as ordens religiosas austeras e fechadas e o mundo exterior. Aqui lemos jornais, mantemo-nos informadas e recebemos conselhos de pessoas activas. Somos Marias, mas também somos Martas.”
O interesse da Grã-duquesa no mundo exterior é patente. Ela pediu-me entusiasticamente para lhe contar como estavam as coisas em Petrogrado e o seu rosto entristeceu-se quando lhe contei dos motins e acontecimentos sangrentos a que assisti durante a Revolução de Julho que ainda mal tinha passado. “É uma altura muito má para nós neste momento”, disse ela, “mas elas hão-de melhorar em breve, tenho a certeza. Os russos são bons e gentis, mas a maior parte deles são crianças grandes, ignorantes e impulsivas. Se conseguirem encontrar bons líderes, e se perceberem que lhes têm de obedecer, vão emergir do caos e construir uma Rússia nova e forte. Já viu Kerensky e o que pensa dele?”
Respondi-lhe com cuidado. Como toda a gente, ainda tinha esperança que o Kerensky deitasse tudo a perder e não queria abalar a confiança que alguém pudesse depositar nele. Disse-lhe que o Kerensky era muito admirado, que as pessoas gostavam dele e que poderia vir a tornar-se no líder forte que a Rússia precisava na sua aflição.
“Espero que sim,” respondeu a última dos Romanov, “rezo por ele todos os dias.”
Os sinos da igreja anunciaram a hora suavemente e a Grã-duquesa interrompeu-se para fazer o sinal da cruz. “Quero saber sobre essas maravilhosas escolas públicas,” disse ela, “mas primeiro diga-me o que está a América a fazer para se preparar para a guerra.”
À medida que eu falava, ela ouvia, acenando com a cabeça e sorrindo, imensamente agradada. A grande frota aérea que estava a ser construída parecia deixá-la muito feliz e, quando lhe falei sobre a conservação de mantimentos e das restrições ao fabrico de álcool, ela ficou radiante. “A América é simplesmente magnífica,” exclamou ela. “Lamento muito nunca ter lá ido. Claro que agora isso nunca vai acontecer. Para mim os Estados Unidos representam a ordem e a eficiência no seu melhor. O tipo de ordem que só um estado livre consegue criar. O tipo de liberdade que rezo para que um dia seja construído aqui na Rússia.” E depois mencionou brevemente o czar deposto. Não sabia que naquele momento o czar estava a caminho da Sibéria, mas é muito provável que ela já soubesse. Ela disse: “Fico feliz por saber que vão proteger os vossos soldados do mal da bebida. Ninguém compreende o bem que a abolição da vodka fez às nossas gentes. Acho que um dia a História vai dar crédito ao Imperador pela sua parte na ideia, não acha?” Concordei que o Imperador devia receber todo o crédito pelo que fez e disse-o com toda a sinceridade.
Isabel Feodorovna deixou-me falar durante quase três quartos de hora sobre as escolas Gary que ela gostaria muito de ver instituídas na Rússia; sobre o esforço das mulheres americanas na guerra e no trabalho social para as crianças, especialmente as tuberculose e as anémicas. “É maravilhoso,” disse ela com um suspiro. “Quase nem consigo impedir-me de cometer o pecado da inveja. Pense numa nação jovem, grande e apressada que ainda arranja tempo para estudar todos estes problemas assustadores da pobreza e da doença, e luta contra eles. Espero que continuem a fazer isso, e que ainda encontrem mais e mais maneiras de trazer paz à vida dos trabalhadores. Como se pode esperar que os trabalhadores que trabalham o dia inteiro em fábricas quentes e horríveis em quintas distantes, sem nada nas suas vidas a não ser o trabalho e a preocupação, possam ter paz nas suas almas?”
Ela queria muito saber sobre as mulheres soldado e disse que admirava muito o seu heroísmo. Queria saber como era a vida nos seus acampamentos e se tinham força suficiente para aguentar o tormento. A Grã-duquesa Sérgio é uma boa feminista e concordou comigo que a crise russa, tal como noutros países afectados pela guerra, tinha demonstrado completamente como as mulheres deviam, a partir de agora, ter um papel tão importante e proiminente como o dos homens.
Teve sempre uma devoção especial por Joana d’ Arc e acreditava que ela se tinha inspirado em Deus.
“Fico feliz por ter gostado do meu convento,” repetiu ela enquanto nos afastávamos. “Por favor visite-nos novamente. Sabe que ele já não me pertence, pertence ao Governo Provisório, mas espero que eles me deixem ficar com ele.”
Espero que a deixem. A Casa de Maria e Marta, com as belas mulheres que lá vivem, é uma das coisas que a nova Rússia não pode perder.
Em Março de 1918, Isabel foi presa no seu convento e levada para o exílio na Sibéria. Acabaria assassinada no dia 18 de Julho do mesmo ano. A Casa de Marta e Maria ainda existe e está em pleno funcionamento nos dias de hoje. As freiras ainda seguem as mesmas regras escritas por Isabel Feodorovna e existe uma estátua dedicada à fundadora no jardim.
No dia em que o czar Nicolau II e a sua família se preparavam para deixar Czarskoe Selo e partir para o seu exílio em Tobolsk, uma jornalista americana, Rheta Childe Dorr, entrevistou Isabel Feodorovna. Era ainda a única Romanov em liberdade, mas isso mudaria poucos meses depois. A entrevista foi publicada já depois da morte da Grã-duquesa.
A Casa de Maria e Marta
Na tarde do dia em que Nicolau II, Imperador deposto e autocrata de todas as Rússias, juntamente com a sua esposa e filhos deixaram Czarskoe Selo e iniciaram a sua longa viagem para o seu exílio na Sibéria, eu estava sentada numa sala pacifica de um convento em Moscovo e falei com quase o último membro da família imperial que disfrutava de total liberdade dentro do Império. Era Isabel Feodorovna, irmã da antiga Imperatriz e viúva do Grão-duque Sérgio, tio do Imperador. O Grão-duque Sérgio foi assassinado, rebentado até sobrarem dele apenas pedaços por uma bomba, quase perante os olhos da sua esposa, por um revolucionário no dia 4 de Fevereiro (estilo antigo) de 1905. Foi morto quando se ia juntar à Grã-duquesa numa das igrejas do Kremlin em Moscovo. Ela correu para fora de casa e viu os seus restos mutilados sobre a neve. A Grã-duquesa Sérgio era já conhecida há muito tempo como uma mulher nobre de espírito e santa e a conduta que tomou depois da morte horrenda do seu marido mostra bem o seu carácter. Implorou ao czar para que retirasse a sentença de morte dada ao assassino e quando ele recusou, ela foi até à prisão onde o homem moribundo aguardava a sua morte, conseguiu obter permissão para entrar na sua cela e, quase até ao último momento, rezou com ele e confortou-o. Nunca teve filhos e, depois do evento que cortou o último laço que a mantinha à pompa real e ao brilho, a Grã-duquesa retirou-se da sociedade e entregou-se à religião. O mais cedo que pôde, tornou-se freira. A sua fortuna privada, até ao último rublo, investimento, palácio, mobília, arte, jóia, carro, sabre e qualquer outro bem foram convertidos em dinheiro que foi usado para a construção de um convento e para pagar a criação de uma ordem religiosa da qual ela se tornou madre superiora. A Grã-duquesa Sérgio obedeceu literalmente ao édito de Cristo aos homens ricos: “Vendei tudo o que tendes e dai-lo aos pobres.”
Isabel com o marido em 1904
O Convento de Maria e Marta, da Ordem da Misericórdia em Moscovo, é um testemunho vivo do seu grande sacrifício. Tem vivido aqui nos últimos oito anos e trabalha junto das suas freiras entre as quais pelo menos uma era uma senhora da corte e muitas outras que pertenciam às classes mais altas. Algumas das freiras pertenciam a casas mais humildes, uma vez que a ordem é perfeitamente democrática. Cada uma das mulheres que entra na Casa de Maria e Marta fá-lo sabendo que a sua vida será passada em serviço, tanto espiritual como o estudo dos Envagelhos de Maria, como material com trabalho. Os Russos, que são um pouco sonhadores, dizem-nos que o convento de Isabel Feodorovna é uma das instituições mais eficientes do Império e acrescentam normalmente que: “Dizem que ela obriga as freiras a trabalhar ao extremo.”
Quando os dias da revolução chegaram em Fevereiro de 1917, uma grande multidão foi até à Casa de Maria e Marta, escancarou os portões e inundou os degraus do convento, exigindo entrar A porta abriu-se e uma mulher alta e séria, vestida com um hábito cinza-prateado pálido e véu branco saiu para o pátio e perguntou o que queria a multidão.
“Queremos a mulher alemã, a irmã da espiã alemã de Czarskoe Selo!” Gritou a multidão. “Queremos a Grã-duquesa Sérgio.”
Alta e brilhante, como um lírio, a mulher ficou no mesmo lugar. “Eu sou a Grã-duquesa Sérgio.” Respondeu ela numa voz firme que flutuou por entre os clamores. “O que querem de mim?”
“Viemos aqui para a prender,” gritaram eles. “Muito bem,” foi a resposta calma. “Se me querem prender claro que vou convosco. Mas tenho uma regra. Antes de sair o convento por qualquer razão vou sempre à igreja rezar. Venham comigo à igreja e depois de ter rezado vou convosco.”
Ela deu meia volta e caminhou pelo jardim até à igreja, com a multidão atrás dela. Tantos quanto puderam entraram no pequeno edifício e seguiram-na. Ajoelhou-se perante o altar e todas as suas freiras se ajoelharam à sua volta e choraram. A Grã-duquesa não chorou. Rezou por um momento, fez o sinal da cruz, depois levantou-se e abriu as mãos para a multidão em silêncio, olhando-os nos olhos.
“Agora já estou pronta para ir,” disse ela.
Mas nem uma mão se ergueu para levar Isabel Feodorovna. O que Kerensky nunca poderia ter feito, o que nenhuma força policial na Rússia poderia ter feito com aqueles homens naquele dia, a perfeita coragem e humildade da Grã-duquesa fez. Intimidou e conquistou a hostilidade, dispersou a multidão. Aquela grande multidão de homens bêbados e libertinos, homens sedentos de sangue que foram calmamente embora, deixando um guarda para proteger o convento. É provavelmente o único local absolutamente impenetrável na Rússia hoje em dia para aqueles que dizem odiar os “bourju”, o nome que dão às classes intelectuais.
No dia de Agosto em que toquei a campainha do portão massivo, não sabia que ia mesmo ver e falar com a Grã-duquesa. O senhor William L. Cazalet de Moscovo, o amigo que me levou até lá, duvidava muito que eu pudesse ser recebida informalmente sem nenhuma marcação prévia. A seriedade dos tempos que vivíamos, principalmente a situação pela qual a família Romanov estava a passar, colocavam a Grã-duquesa Sérgio numa situação extremamente delicada e o senhor Cazalet disse-me com toda a franqueza que esperava vê-la afastada de todos. O melhor que podia prometer, disse ele, era que eu podia ver o convento, onde uma das suas primas era freira.
O convento, que se encontrava localizado no centro de Moscovo, é um conjunto de pedra branca e casas de estuque construídas em volta de um velho jardim e rodeadas por um muro branco alto coberto de era. Uma chave foi rodada, o portão castanho foi aberto e entramos no jardim que estava em flor. Lembro-me de doces-de-bico brancos e cor-de-rosa no muro, dos lírios brancos que dançavam com o vento e uma passadeira de verbenas que se estendia ao longo do pátio até à porta do convento. Havia muitas macieiras e uma floresta de lilases roxos e brancos.
Fomos recebidos numa sala pequena que era uma mistura de escritório e sala-de-estar, pela chefe executiva do convento, a senhor Gardeeve, uma amiga de longa data de Isabel Feodorovna.Tal como a Grã-duquesa, esta mulher tinha tido uma vida cheia de lágrimas e tribulações apesar da sua posição privilegiada e quando ela tomou o véu, Gardeeve tomou-lhe o exemplo e tornou-se freira. Os negócios do convento realizam-se sob a sua supervisão e de uma forma notável, segundo o que me foi dito. A eficiência e a habilidade estão escritas em cada traço do rosto delicado de Gardeeve assim como na sua voz decidida e transparente e através dos seus gestos graciosos. Foi uma alegria ouvi-la conversar, especialmente para mim, uma vez que tenho dificuldades em compreender o francês indistinto falado pelo russo comum. O francês da senhor Gardeeve era perfeito, do tipo que se ouve mais em digressões do que em Paris ou outro lado qualquer. Uma mulher do mundo da cabeça aos pés, a senhora Gardeeve usava o hábito distinto da ordem com a mesma graciosidade com que teria usado um vestido da última moda. Sorriu e conversou com o senhor Cazelet, que é muito conhecido no convento, e foi muito gentil e cordial comigo. Depois de ficarmos a conversar durante alguns minutos, o meu amigo disse-lhe que eu lhe tinha contado coisas muito interessantes sobre as escolas publicas americanas e queria que eu as contasse a ela.
Por isso contei-lhe algo sobre as experiências extraordinárias que tinham resultado em Gary, Indiana e sobre o trabalho que estava a ser feito em Nova Iorque e outros lugares para que as crianças, ricas e pobres, tivessem as mesmas oportunidades nos estudos. Á medida que falava, ela exclamava de vez em quando: “Mas isso é excelente! Acho admirável! A Grã-duquesa devia ouvir isto!”
Eu disse-lhe que gostava muito de conhecer a Grã-duquesa e ela respondeu que poderia haver possibilidade de isso acontecer. Mas não naquele dia, uma vez que a Grã-duquesa estava extremamente ocupada. Perguntou-me quanto tempo é que eu ficaria em Moscovo e disse que dentro dessa semana seria possível arranjar o encontro. Perguntou-me depois o que gostava de ver no convento e quando eu disse que queria ver tudo, ela riu-se, tocando uma campainha. Apareceu então uma pequena freira e a senhora Gardeeve entregou-me a ela com ordens de que me mostrasse todo o convento.
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